Perto da linha do comboio, escondido numa pequena travessa da Avenida de Roma, encontramos um alpendre com uma porta e uma campainha. A placa a dizer “clube privado” ainda está lá. Há 20 anos, só quem tinha cartão podia entrar. Hoje em dia, o público já é mais alargado. Os cocktails vieram da América e o dono já foi desde mandarete de hotel a barman das casas mais icónicas de Lisboa.
São oito e meia de segunda-feira. Tocamos à campainha e um homem de 30 anos abre-nos a porta. O balcão do bar está repleto de canecas antigas, maioritariamente inglesas. O chão, tecto e paredes são em madeira. “O Paulo Magalhães está?”, perguntamos. À direita, sentado num sofá de veludo, vemos o dono da casa. A fumar um cigarro. Na casa dos 50. A postura com que nos recebe revela que já trabalha na noite há muito tempo. No bar, é sócio desde 1998.

“A casa estava fechada há uns quatro/cinco anos. Eu e um colega meu falámos com o contabilista e chegámos a um acordo. Aluguer. Umas obras aqui e ali e agarramos a casa. Mais tarde, esse meu colega saiu e eu fiquei cá. Depois, acabei por arranjar outro sócio e comprámos o bar”, conta. Um dos bares mais icónicos de Lisboa, o Old Vic. No entanto, a história deste estabelecimento só merece ser contada, se primeiro descrevermos a do dono.
Nasceu em Trás-os-Montes numa família de cinco filhos. Era o mais velho. Estava a estudar, para depois ir para o seminário em Vila Real, até que o pai morreu num acidente. Com 11 anos, viu-se obrigado a ir para o Porto, porque a mãe não conseguia sustentar a família toda. Foi entregue aos padrinhos que estavam ligados ao sector hoteleiro, em França.

Aos 12 anos, veio para Lisboa, trabalhar no hotel Dom Carlos, na Duque de Loulé. Começou como moço de recados, enquanto acabava o sexto ano, no Almada Negreiros. Passado um ano, desistiu para ajudar os irmãos que também estavam a vir para a capital. “Desisti eu, para eles começarem, para ajudar a minha mãe. Então era mandarete, depois passei para o bar até que cheguei ao room service. Estive lá dez anos.”, recorda Paulo Magalhães.
É entre um cigarro e outro que o rosto mais conhecido do Old Vic lembra o período antes do 25 de Abril como a época de ouro da hotelaria. “Digo-lhe muito sinceramente: tenho muitas saudades desse tempo. Nessa altura, ganhei muito dinheiro com as gratificações, está a ver? Os engenheiros da EDP, intelectuais como o David Mourão Ferreira, e também alguns agentes da PIDE paravam lá no hotel, e mandavam-nos ir buscar jornais e cigarrilhas. Davam-nos 20 escudos e a gente ficava com o troco. Era dinheiro! Com a idade que eu tenho ganhava mais do que ganho hoje. Isto é a realidade e eu sou patrão”.

Mas, quando se deu a revolução dos cravos, Paulo Magalhães sentiu que o sector hoteleiro atravessava uma “situação muito complicada”, sobretudo por causa do regresso dos retornados, da proliferação dos sindicatos e do surgimento das greves gerais.
“Desisti eu, para eles começarem, para ajudar a minha mãe. Então era mandarete, depois passei pelo bar até que cheguei ao room service”
“Houve uma queda no Turismo. A malta que vinha das colónias infiltrou-se nos hóteis e degradaram-nos muito. Depois eram coisas que se estavam a passar em Portugal, greves, reuniões. Eu depois fui chamado à inspecção e pedi logo para fazer o serviço militar. Já estava um bocado saturado. Aquilo no hotel estava muito mau”, conta. E piorou. “Quando voltei, aquilo estava uma residencial autêntica”. Por isso, falou com o director do Dom Carlos, pediu-lhe uma indemnização e foi trabalhar para o Foxtrot (outro bar icónico de Lisboa, no Príncipe Real).

Os anos no Foxtrot e a escola dos cruzeiros
Em 1980, entra no Foxtrot e é lá que permanece durante seis anos. “Foi a casa onde eu gostei mais de trabalhar. Eh, pa, vocês chegavam lá às seis da tarde e não conseguiam entrar”, diz ao mesmo tempo que puxa pelo cigarro. Mas, aponta: “aquilo hoje já não é o que era. A sala mais bonita já não existe. Nem a Zizi, a arara que metia as bolas nos buracos da mesa de snooker”. Entretanto, o dono divorciou-se e alugou o espaço. E Paulo decidiu rumar para o outro lado do Atlântico. Já andava com a ideia dos cruzeiros, porque tinha colegas lá, e quis experimentar.
“Os Estados Unidos enriqueceram-me. Foi uma experiência… Aquilo é um mundo à parte. Nós estavamos muito bem no bar e de repente entravam-nos umas 500 pessoas, só a pedir cocktails. Estou-lhe a dizer. [Pausa] Estou-lhe a dizer!”, frisa. Chegava a fazer 200 cocktails por dia. Bahama Mama, Strawberry Daiquiri, Bloody Mary, Mimosa, Kamikaze … Das oito da manhã às quatro/ cinco da madrugada. Cerca de 20 horas de trabalho. Diariamente. Durante dois anos. Uma experiência que acabou por se tornar uma escola, já que foi na América que aprendeu tudo o que sabe hoje sobre Mixologia.

Todavia, com este ritmo de vida diferente demorou a assentar. Portugal tinha acabado de sair de uma ditadura, onde a noite não era vivida por todos nem existia a variedade de cacharoletes e bebidas alcoólicas que havia nos Estados Unidos. Paulo precisou ainda de uns meses, para se ambientar ao estilo de vida de um cruzeiro americano.
“Davam-nos 20 escudos e a gente ficava com o troco. Era dinheiro! Com a idade que tenho ganhava mais do que ganho hoje. Isto é a realidade e eu sou patrão”
Nas férias de 88, veio passar uns dias a Lisboa e descobriu que o Pavilhão Chinês precisava de empregados, para uma nova sala de snooker que o dono estava a construir. Falou com Luís Pinto Coelho e, nos nove anos seguintes, trabalhou no estabelecimento deste ávido coleccionador. “Também gostei de lá trabalhar, mas acabei por sair pelo ambiente. Aquilo era uma zona muito complicada. Às vezes, havia lá chatices… Gajos que lá entravam… Sabe como é aquela zona, no meio daquilo tudo.”, refere, apagando o cigarro no cinzeiro de vidro.

A privacidade do Old Vic
Quando saiu, soube que o Old Vic estava fechado e disponível para arrendar. Decidiu pegar no bar de decoração inglesa com um sócio e até hoje a casa não parou de funcionar. “Ando a trabalhar com muita malta nova. Eles começam a querer conhecer as casas do antigamente. Estão a ficar um bocado cansados de não terem segurança naqueles pontos, Bairro Alto, Cais do Sodré. Querem sossego, está a ver?”, conta.
No entanto, por muito que sirva um copo ou dois a um jovem curioso, Paulo Magalhães ainda tem clientes que procuram a privacidade de antigamente, do tempo da família Azinhais. Clientes como António Guterres e a sua primeira mulher (entretanto falecida), os pais de Ribeiro e Castro, e outros políticos de renome, que o dono pediu para não revelar. “Eh, pa, eu lido com montes de gente assim. Tinha aí um grupinho maçom que vinha várias vezes. Era à segunda e à quinta-feira. Você ouve falar, mas no fundo eles dão-se todos bem. Vinha cá o… [Pára de repente]”.
“Nós estavamos muito bem no bar e de repente entravam-nos umas 500 pessoas, só a pedir cocktails”
Ouve-se a campainha. De seguida, passos. Chegam os primeiros clientes da noite. São duas jovens. Paulo guarda o cigarro que ia acender, levanta-se do sofá e dirige-se à cozinha do fundo. Vai vestir a farda cor de vinho e buscar a lista de bebidas. Entrega-a às raparigas e diz-nos que nos vai dar a provar um verdadeiro Kamikaze. Enquanto pega nas cerejas com um palito, começa a explicar a história do Old Vic.

Abriu portas em 1982 com a gerência de Frederico Azinhais, um homem muito influente na altura de Salazar. Trabalhava com o Estado na área dos câmbios e sentiu a necessidade de abrir uma casa para receber os amigos e tratar de alguns negócios. “Quando abriu, isto era um bar muito privado. Você só entrava aqui pondo um cartão na ranhura”, diz ao mesmo tempo que coloca o gelo nos copos. “O porteiro via se o indivíduo interessava à casa ou não e depois dava-lhe um cartão com um número. Era um clube de sócios. Aliás, ainda está lá a placa na porta”, relembra, misturando as bebidas no shaker.
Entretanto, o dono morreu e o filho mais velho, Artur, ficou à frente do estabelecimento. “Mas, não tinha vida para isto! Ficar aqui até às duas da manhã não dava para ele. Foram surgindo uns problemas aqui e ali e acabou por fechar o bar”, conta, enquanto põe o cocktail em dois copos e nos dá a provar. “É bom. Sabe a limão, mas não é muito doce”.

O clube privado ficou, assim, de portas fechadas durante cinco anos. Até aparecer Paulo Magalhães, em 1998. A partir desse ano, o Old Vic deixou de parte os cartões de sócios e passou a estar aberto a todo o público. No entanto, a privacidade mantém-se. “Se você estiver sentado nalguns destes sofás, só consegue ver a pessoa que está ao seu lado. Não consegue ver quem está atrás. A casa tem estes pequenos pormenores que a tornam secreta”, remata.
Pormenores que vieram de Inglaterra, em contentores. Já que, o bar é uma cópia de outro que houve em tempos na capital inglesa. Chamava-se também Old Vic e estava encostado ao Teatro Nacional – hoje também ele chamado Old Vic Theatre. Até Artur Azinhais, a casa era uma imitação autêntica. Já Paulo Magalhães acrescentou-lhe uma sala de snooker e renovou-lhe a cozinha.
“Tinha aí um grupinho maçom que vinha várias vezes. Era à segunda e à quinta-feira. Você ouve falar, mas no fundo eles dão-se todos bem”
No entanto, sentiu dificuldades em encontrar os mesmos materiais e explica porquê: “Estas paredes são revestidas a damasco. Isto consegue-se, mas é em fibra. E com o tempo fica muito barrento com o fumo. Então tive de arranjar um papel a imitar o damasco. Veio de Itália. Mesmo a madeira também tive de arranjar outra. Só há em contraplacado”.

Fotografia: Paulo Primaz
Apesar dos primeiros anos de reabertura não terem sido fáceis, Paulo Magalhães sente-se confiante de que esses tempos pertencem ao passado. Depois da sala de snooker e da junção dos clientes habituais e dos mais jovens, o negócio encaminhou-se. E hoje é o projecto de vida de Paulo, que serve às mesas e faz os seus cocktails americanos das cinco da tarde às duas da manhã.

Esta reportagem está escrita de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.